A utilização de misturas de leveduras para a produção de cerveja é vista como uma característica para alguns estilos de cerveja. Entretanto, não misturar leveduras é como tocar em uma banda de um único instrumento. A mistura de leveduras pode gerar características sensoriais nunca atingidas utilizando culturas puras.
Certamente as primeiras fermentações de grãos e produção de cerveja não eram conduzidas utilizando culturas puras. E claro, por um motivo óbvio: não se tinha o conhecimento das leveduras e muito menos técnicas para isolar esses microrganismos. A primeira levedura cervejeira foi isolada por Emil Christen Hansen em 1883 nos laboratórios da cervejaria Carlsberg. Contemporâneo de Hansen, Louis Pasteur, publicou que as cervejas produzidas utilizando culturas puras tinham melhores resultados. E assim, iniciou-se um movimento praticamente mundial para isolar e utilizar culturas puras para a produção de cerveja. Para as grandes indústrias, que produzem milhões de litros do mesmo produto, até que faz sentido. Mas e para nossas cervejarias artesanais? Que produzem tantos estilos diferentes de cervejas?
Às vezes eu tenho a impressão de que a maioria das cervejas tem o mesmo sabor ou muito próximos. Mas como isso é possível se os cervejeiros usam diferentes grãos e lúpulos em suas receitas? Basicamente, a grande maioria das cervejarias brasileiras utilizam as mesmas leveduras para fazer as mesmas cervejas.
Obviamente utilizar culturas puras pode trazer algum tipo de “conforto” no gerenciamento desses microrganismos em uma fábrica. Muitos preferem por ser mais fácil trabalhar com uma única cepa, ou por acharem que pode ser muito caro trabalhar com mais de uma. Mas a utilização de misturas de leveduras é muito simples, basta você ter dois tipos diferentes de leveduras na sua fábrica que você já pode misturar elas e descobrir a complexidade das fermentações mistas.
Mas a grande pergunta é: e por que misturar leveduras? A resposta é muito simples…
Podemos conduzir fermentações com diversas misturas de microrganismos, desde dois ou mais tipos de leveduras Saccharomyces para cerveja, vinho ou cachaça, ou mesmo utilizar outros microrganismos como Brettanomyces, Lactobacillus e Pediococcus para a produção de mixed e wild beers. Uma questão importante e que vai te ajudar a ter sucesso nas fermentações com misturas de leveduras ou microrganismos é conhecer as características bioquímicas de fisiológicas de cada microrganismo utilizado, evitando dessa forma a produção de sabores não desejados. Leveduras de vinho ou cachaça podem expressar alguns fatores que irão minimizar a saúde de leveduras cervejeiras, então cuidado. Já as leveduras cervejeiras não irão competir umas com as outras, e irão fermentar em harmonia a sua cerveja. Outra questão importantíssima é conhecer os aromas e sabores que os microrganismos irão produzir nas condições utilizadas. Por exemplo, a mistura de leveduras lager e saison pode não ser uma boa ideia, pois em temperatura de lager a saison não irá contribuir com sabores e em temperaturas de saison a levedura de lager irá produzir off flavors. Como a atenuação de leveduras lagers já é bastante elevada, não faria sentido usar a levedura de saison para aumentar a atenuação de uma fermentação lager.
Mas em que momento eu devo adicionar as leveduras? Todas juntas no início da fermentação ou em momentos distintos? E a resposta é….depende do que você quer!!
Mantenha em mente que a maioria dos compostos de aroma e sabor são formados até as primeiras 72 horas de fermentação. Após esse período, que deve contemplar em torno de 65% de atenuação, as leveduras adicionadas não irão contribuir com aromas e sabores na cerveja. Então, se o objetivo é potencializar sabores ou adquirir o perfil sensorial de duas cepas distintas, você deve adicionar as leveduras juntas, no início da fermentação. Para começar, adicione a mesma quantidade de cada uma delas. Porém esse novo mundo de misturas de leveduras é um jogo de tentativa e acerto. Você precisará conduzir alguns testes até atingir a proporção de leveduras que gere o melhor perfil.
Já no caso de adicionar leveduras para aumentar a atenuação ou tolerância ao etanol, é recomendado adicionar as leveduras mais ao final da fermentação. Nesse momento as leveduras irão consumir os açúcares residuais sem adicionar sabores a cerveja. Aqui temos dois importantes conceitos: Primeiro, o reuso dessa biomassa de leveduras certamente será comprometido, pois você não conseguirá produzir a próxima cerveja sem que essa levedura impacte nos sabores formados. Segundo, muito cuidado ao adicionar leveduras próximo ao final da fermentação, principalmente com elevadas concentrações de etanol. Lembre-se que nesse momento já não existe mais oxigênio e nutriente para essa levedura que vai ser inoculada. Então trabalhe bem a levedura antes de inocular, um bom starter e uma ótima oxigenação irão ajudar a levedura a trabalhar nesse ambiente hostil.
Apesar as leveduras cervejeiras crescerem com velocidades muito próximas, se você for fazer uma propagação é aconselhável propagar separadamente cada cepa e depois inocular em conjunto. Você pode fazer o reuso dessa biomassa, mas ninguém pode garantir qual a proporção das leveduras no momento da coleta. Se pensarmos no reuso de uma mistura de leveduras onde uma levedura é de alta floculação para estimular a co-floculação de outra levedura responsável pelos aromas da cerveja, em questão de 2 ou 3 gerações, a coleta no fundo do fermentador será praticamente a levedura de alta floculação, modificando totalmente o perfil sensorial da cerveja.
Para começar, misture as leveduras que rotineiramente você utiliza na sua fábrica. Uma vez que você conhece o perfil sensorial de cada uma, saberá melhor do que ninguém como misturá-las e ampliar sua criatividade e arsenal cervejeiro.
Tipo de cerveja | Objetivo | Cepas de leveduras | Comentários |
Barley Wine | Aumentar a atenuação | British ale TB05
English ale TB07 |
Sabores e aromas com a adição da british ale e após adquirir elevada atenuação com a english ale |
ESB | Potencializar sabores | London ale TB13 (50%)
English ale TB07 (50%) |
Aumentar o perfil de ésteres da cerveja com final seco e bem atenuado |
Strong Beer
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Aumentar potencial de álcool e melhorar atenuação | Seljeset Kveik
Farmhouse saison TB11 |
Sabores relativamente neutros a 35°C, fermentação rápida e alta tolerância ao álcool e seguido de TB11 para melhorar a atenuação |
Juicy APA | Melhorar sabores e atenuação | London ale TB13 (60%)
American ale TB10 (40%) |
Perfil é dominado pela london ale, com final bem-acabado com a american ale |
Gabriela Müller: Diretora técnica da Levteck Tecnologia Viva, Dra em Bioquímica com ênfase em engenharia genômica de leveduras Saccharomyces e eterna cervejeira caseira.